E eu acordei mais leve, nada era importante e não havia motivo pra levantar, mas eu me levantei, como em um daqueles movimentos involuntários que você faz quando um estranho acena para você, e você responde. Bastou imaginar essa cena e eu estava de pé, em meio a uma multidão de pessoas que passavam acenavam e sumiam. Mas tudo continuava muito leve, claro, limpo, desimportante demais e sem motivos para preocupação. Não me lembrava de ter ido me deitar, muito menos de ter adormecido naquele lugar limpo, claro, leve e surreal. Mas nada disso me preocupava, tudo devia estar suspenso e nada devia pesar, não havia com o que se preocupar, era leve. E naquele local novo, estranho e flutuante, em meio aos estranhos acenando, apareciam rostos conhecidos de gente bonita e famosa que eu reconhecia, mas que com certeza não fazia a menor ideia da minha identidade. Um pensamento engraçado me ocorreu, e me pus a rir em outro ato involuntário. Toda aquela gente achava que era estranha, mas não era! Os rostos que eu conhecia, que eu via na TV, as vozes que eu ouvia no rádio, as faces que eu tinha conhecido no youtube, todas elas me encaravam, acenavam como estranhos (pois aquele era um peculiar aceno de estranhos) e sumiam , por todas as partes, em meio aos outros estranhos. Eu via, e ria! Eles achavam que eram estranhos mas eu os conhecia, não é hilário? E pensando bem, até mesmo aqueles que eu realmente não conhecia, havia passado a conhecer, pelo menos a face. Daí comecei a refletir que nem mesmo os realmente estranhos continuavam completos desconhecidos a partir do momento em que eu os localizava no meu campo de visão. E daí para achar que eu conhecia todo mundo foi um pulo. Quando pensei isso todos começaram a aparecer, acenar, sorrir, e sumir. Mas a imagem de cada um deles ficava na minha retina, como quando se olha para o sol e é preciso piscar freneticamente para retirar o pontinho luminoso dos olhos. Agora eles acenavam como conhecidos, sabe? Parece bobo mas existe uma diferença imensa entre o aceno de um estranho e de um conhecido... Nada que possa ser taxonomicamente analisado e explicado, mas você sabe diferir. E eu sabia. Aquele lugar leve, calmo puro e suspenso começou a ficar embaçado da imagem de cada quase-estranho que surgia e acenava, agora eu tinha certeza que conhecia todo mundo, e achei que talvez fosse assim que se sentisse Deus. Então, a partir daí eu senti meu corpo se elevar e via todos eles de cima, e continuavam acenando... Engraçado, eu sempre quis saber se existia um Deus, nunca acreditei nele, e agora eu me via ali encima, olhando todos os conhecidos do mundo acenarem e sumirem. E então o grande dilema metafísico havia sido resolvido. Não havia mais a questão na minha mente de quem era Deus ou porque ele deixava tanta gente sofrer... Eu era Deus!
Eu era Deus... não era?
E de repente o lugar que me parecia leve pesou, meu corpo caiu, o que ere limpo condensou, o claro escureceu e milhões de estranhos começaram a salpicar naquele novo lugar pesado e incomodo, olhando, acenando, gritando por mim. Nenhum deles parecia ouvir minha resposta, e por mais que eu os fitasse eu não conseguia ter aquela sensação de que já os conhecia de algum lugar, nem famosos nem anônimos, só estranhos. Mesmo depois de entrar no meu campo de visão eu não podia achar que os conhecia, nem ao menos a sua face. E foi nesse súbito lance de pensamento que percebi, que todos aqueles milhões de estranhos gritando e clamando por mim tinham uma estranha face, a minha face, e nem por isso eu os achava familiares. Ali estava alguém, que supus eu, jamais poderia conhecer. E quando pensei isso, dessa vez, nada mudou.
Álbum de inspirado no texto: Flesym